sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Lupercília


Comprei esta fotografia em 2016/17 em um bazar, junto com ela estava um livrinho de orações que já postei aqui, o Nova Cartilha da Doutrina Cristã, que pertenceu a esta garotinha quando moça, datado de 1945. Quando vi a foto é claro que endoidei com a beleza da imagem que, até alguns dias quando escaneei e fotografei para postar aqui, julgava tratar-se de um menino, já que a roupa usada por ela e pelas crianças na época eram todas parecidas, tipo uma batinha que servia para ambos os sexos. O cabelinho curtinho, cortado rente ao casco parecia o de um menino, mas, era uma menina, que vir a saber ao retirar a foto da moldura e ler a dedicatória enviada a uma Mme. Hilda Lima por Lupercília, uma menininha por quem os pais escreveu assinando por ela.
 Lupercília deveria ser uma menina negra de família abastada, ou com certos recursos financeiros, pois para posar em um estúdio fotográfico como o Maffra daqui da Bahia, havia que ter grana. A foto é enviada a uma Madame, a família de Lupercília deveria ser bem relacionada. O traje da menina é muito bonito e rico, em rendas, o sapatinho de alça em verniz, ela está uma beleza, linda...emocionante a foto e pensar que, muitos anos depois a mesma e mais o livro de orações dela estivessem em um bazar para venda, quem sabe, num estágio antes de ir para o lixo se eu não os tivesse comprado. Eu me interesso por velharias, a maioria, não, talvez ninguém visse a beleza da foto, a humanidade da foto, a história da foto e todas as relações que me passa pela cabeça quando a olhei, quando olho ela. Lupercília foi uma menina privilegiada, já que a maioria negra do país não tinha condições de registrarem a imagem de seus filhos em um fotógrafo profissional. Esta imagem é, portanto, um registro importante, histórico sobre as famílias negras da Bahia do início do século XX e das famílias negras que ascenderam socialmente.
Fico intrigado com o corte do cabelo da menina que ficou parecendo um menino. Anularam o cabelo dela. Não sei se por "higiene" foi cortado assim, não sei se às meninas negras não era dado o prazer de ver seu cabelo crescer, se achavam feio o cabelo do negro...se desprovido de beleza, não merecia crescer...não sei se era moda ou costume da época esse corte. 
Hoje isso não acontece.
Me lembro de muitas meninas negras com o cabelo grande dividido ao meio e com duas trancinhas amarradas nas pontas uma à outra. Lupercília estava quase carequinha. Mas, que distinção, e que olhar e que porte!
Uma foto mágica esta.






8 comentários:

  1. Que show meu amigo! Vc sempre nos emocionando...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Essa foto é um escândalo! Amo. Inspira tudo e mil reflexões, deduções, constatações etc. etc.
      Salve todas a Lupercílias do Brasil.
      Abraços.

      Excluir
  2. P.S. Nessa época, era comum ser chamado de " crioulinho e crioulinha"!!! Minha mãe de criação era portuguesa,e só me chamava asssim kkkkkk

    ResponderExcluir
  3. É verdade. Aqui na Bahia se chamava negrinho ou negrinha ou, carinhosamente, neguinho, neguinha.
    Um abraço.

    ResponderExcluir
  4. Jorge

    Gostei muito deste seu post, que está muito escrito e capta tudo aquilo que esta foto tem de tocante, a menina negra com o seu melhor vestido e os sapatos de ir ver a Deus, ao Domingo. Esta imagem levanta-nos tantas interrogações. Quem foi a Lupercília? Ainda estará viva? Será que a Hilda Lima era alguma madrinha rica que custeava a educação da menina? E depois, Lupercília, quem se lembrou de tal nome? aonde foram buscar a ideia?

    Talvez a pobre Lupercília já tenha morrido, mas esta fotografia é um documento muito vivo e tocante da história da sociedade brasileira.

    Um abraço lusitano

    ResponderExcluir
  5. Olá, Luís! Bom, eu comprei a foto e mais um livrinho assinado pela dona, Lupercília. Estavam juntos. Foto antiga e livro dos anos 40 assinado, creio ser de Lupercília. Acho que ela faleceu e deram para um bazar de igreja.
    Eu não iria deixar essa foto e o livro por lá. Pois é, a gente pode fazer mil suposições, indagações sobre como os restos da dona foram quase que jogados fora. Um bazar é um estágio pré- lixo. Se não levam, vai pro lixo.
    Sim, a dona Hilda pode ser uma madrinha, alguém de posição mais elevada, e a família de Lupercília teria bons relacionamento de amizade. Ela deveria ser uma menina de uma família de classe média, de uma família negra que ascendeu. Bem, para ir a um estúdio naquela época não era barato.
    O que vale é que ela está aqui, foi revista com muito carinho e respeito. Voltou ao reino dos vivos e linda brilhando.
    espero que ela tenha tido uma longa vida, vivido bem.
    É isso. E este nome, Lupercília, eu adorei. Antigo!!!!Eu conheci uma Percília, uma negra maravilhosa que também já faleceu.
    Vi as últimas fotos que vc colocou no Velharias, lindas! Gente de escol...como Lupercília.
    Abraços.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Jorge

      Obrigado pela sua resposta.

      Sabe que aqui em Portugal nunca nos deixamos de espantar com os alguns dos nomes próprios usados no Brasil. Ainda Pensei que Lupercília fosse o nome de uma santa mártir do século III e fiz algumas pesquisas na net, mas nada. Talvez tenha a ver com uma antiga festa romana, as Lupercais, cujos sacerdotes eram os luperci, escolhidos entre as melhores famílias da Antiga Roma. Talvez o nome seja o sinónimo de alguém nobre e esta menina negrinha é sem dúvida nobre, na sua dignidade tão comovente.

      Ainda bem que resgatou a Lupercília do esquecimento. Essa menina vai ficar gravada na minha memória

      Excluir
  6. Pois é Luís, essa foto eu guardei durante quase dois anos e eu pensava que fosse de um garoto. Anularam o cabelo da menina! Uma maldade.
    O nome é mesmo inusitado, nunca ouvi por aí. Percília, parecido, sim, aliás, Percílias há muitas aqui na Bahia.
    Esse nome deve ter vindo via Portugal e não é africano e muito menos indígena. É uma mistura de tudo como é o Brasil.
    Um abraço lupercílio.

    ResponderExcluir